O mundo em uma palavra: Pessoa!
“Sentir tudo de todas as maneiras,
viver tudo de todos os lados,
ser a mesma coisa de todos os modos
possíveis ao mesmo tempo.”
Fernando Pessoa.”
Bem, entramos na energia geminiana. E, para mim nada mais autenticamente geminiano do que Fernando Pessoa. Poeta português, nascido a 13 de junho de 1988. F.P. era do signo de Gêmeos, com Ascendente em Escorpião, a Lua em Leão, Mercúrio em Câncer. Uma das principais características dos geminianos é a habilidade comunicativa, e ele parece ter exercido essa habilidade ao extremo. Ele era também profundamente interessado no ocultismo de uma forma geral e na astrologia em particular, sendo um hábil e minucioso astrólogo que nunca exerceu a atividade profissionalmente. Ele mesmo se explicou assim na revista Presença: "A obra pseudônima é do autor em pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa; é duma individualidade completa, fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu".
Sou apaixonada por Fernando Pessoa, por seus heterônimos, por sua obra. Tudo já foi dito, tudo já foi explorado, de sua obra a sua vida intima. De um tudo! Analisado. Nada há para ser dito. E, talvez por isso, tudo por ser sentido. Quem já leu Fernando Pessoa, ele mesmo, e seus heterônimos sabe que cada um deles é diferente do outro em tudo. Isso intriga, instiga a mente humana a entender. Ele próprio disse “O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, na dor lida sentem bem, não as duas que ele teve, mas só as que eles não tem. E assim nas calhas de roda gira, a entreter a razão, esse comboio de corda que se chama coração”. A profundidade de sua obra desafia-nos a superar nossa capacidade de entendimento, nossa inteligência, sensibilidade, enfim convida-nos a ir além.
E essa é a energia do mês: o desafio à inteligência. Nossa mente está sendo provocada a fim de entender, de buscar compreensão quanto aos aspectos divergentes de nossa vida para harmoniza-los, equacioná-los. Embarcar nessa viagem nos levará inevitavelmente a penetrar nas regiões mais obscuras de nosso ser, mas a luz penetrada nessas regiões trará a possibilidade de transcender à condição humana. Passageiros a bordo e boa viagem... Para acompanhá-los selecionei algumas poesias e pensamentos de Fernando Pessoa para aguçar sua vontade!
“Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental
Mas reconheço ao medir-me
Que tudo isso é pensamento
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar “
.......
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo
......
Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.
Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-rne,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.
Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
Os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
......
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam
Obs.: Essa é aquela que mexe profundamente... imitar o olimpo!, os deuses são deuses porque não se pensam...
O guardador de rebanhos
VIII
Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada Das coisas que criou –
“Se é que as criou, do que duvido" –
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada,
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
.................................
Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
“Sentir tudo de todas as maneiras,
viver tudo de todos os lados,
ser a mesma coisa de todos os modos
possíveis ao mesmo tempo.”
Fernando Pessoa.”
Bem, entramos na energia geminiana. E, para mim nada mais autenticamente geminiano do que Fernando Pessoa. Poeta português, nascido a 13 de junho de 1988. F.P. era do signo de Gêmeos, com Ascendente em Escorpião, a Lua em Leão, Mercúrio em Câncer. Uma das principais características dos geminianos é a habilidade comunicativa, e ele parece ter exercido essa habilidade ao extremo. Ele era também profundamente interessado no ocultismo de uma forma geral e na astrologia em particular, sendo um hábil e minucioso astrólogo que nunca exerceu a atividade profissionalmente. Ele mesmo se explicou assim na revista Presença: "A obra pseudônima é do autor em pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa; é duma individualidade completa, fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu".
Sou apaixonada por Fernando Pessoa, por seus heterônimos, por sua obra. Tudo já foi dito, tudo já foi explorado, de sua obra a sua vida intima. De um tudo! Analisado. Nada há para ser dito. E, talvez por isso, tudo por ser sentido. Quem já leu Fernando Pessoa, ele mesmo, e seus heterônimos sabe que cada um deles é diferente do outro em tudo. Isso intriga, instiga a mente humana a entender. Ele próprio disse “O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, na dor lida sentem bem, não as duas que ele teve, mas só as que eles não tem. E assim nas calhas de roda gira, a entreter a razão, esse comboio de corda que se chama coração”. A profundidade de sua obra desafia-nos a superar nossa capacidade de entendimento, nossa inteligência, sensibilidade, enfim convida-nos a ir além.
E essa é a energia do mês: o desafio à inteligência. Nossa mente está sendo provocada a fim de entender, de buscar compreensão quanto aos aspectos divergentes de nossa vida para harmoniza-los, equacioná-los. Embarcar nessa viagem nos levará inevitavelmente a penetrar nas regiões mais obscuras de nosso ser, mas a luz penetrada nessas regiões trará a possibilidade de transcender à condição humana. Passageiros a bordo e boa viagem... Para acompanhá-los selecionei algumas poesias e pensamentos de Fernando Pessoa para aguçar sua vontade!
“Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental
Mas reconheço ao medir-me
Que tudo isso é pensamento
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar “
.......
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo
......
Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.
Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-rne,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.
Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
Os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
......
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam
Obs.: Essa é aquela que mexe profundamente... imitar o olimpo!, os deuses são deuses porque não se pensam...
O guardador de rebanhos
VIII
Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada Das coisas que criou –
“Se é que as criou, do que duvido" –
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada,
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
.................................
Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.